PARADIGMAS
Teoria Celular
O objecto desta disciplina é a célula, entidade a que se atribui o conceito de unidade estruturante, nos planos anatómico e fisiológico, de todos os seres vivos. O conhecimento de que dispomos sobre a célula começou a gerar-se no século XVII a partir dos trabalhos realizados por diversos cientistas (R. Hooke, Leeuwenhoek, Malpighi, Grew...) que exploraram as potencialidades do recém inventado microscópio. Os tecidos vegetais foram os primeiros a despertarem o interesse dos cientistas. Examinando cortes delgados de cortiça, Hooke observou uma estrutura alveolar que lembrava os favos de uma colmeia, nomeadamente pela forma hexagonal com que frequentemente se dispunham. A esta estrutura elementar, Hooke atribuiu a designação de célula (do latim: cellula, pequena cela), em 1665.
Na realidade, Hooke não observava células, mas apenas as suas paredes, pois a cortiça é um tecido morto. Malpighi e Grew, ainda que não empregassem o termo proposto por Hooke, observaram igualmente que certas partes das plantas eram compostas por pequenos elementos a que chamaram utrículos, sáculos ou vesículas.
Seguidamente, o conceito de célula é retomado por outros cientistas como Haller e Bonnet (1757), Oken (1824), Brisseau-Mirbel (1831) e Milne Edwards. Em 1831, Brown observa nas células de diversas plantas, a presença constante de um corpúsculo, ao qual atribui a designação de núcleo.
Tendo observado nos vegetais os utrículos descritos por Malpighi, Dutrochet procurou-os também nos animais. Encontrando-os, concluiu que a natureza possuía um plano uniforme a que obedecia a estrutura íntima de plantas e animais (1837).
A Teoria Celular foi estabelecida simultaneamente por dois naturalistas alemães, o botânico Mattias Schleiden (1801-1881) e o zoólogo Theodor Schwann (1810-1882). Schleiden estudava, em particular, o saco embrionário de diversas fanerogâmicas e observou a independência das células e a importânci do papel do núcleo. Schwann, pelo seu lado, entrevê a unidade estrutural das células animais e vegetais e constata que, à semelhança das células vegetais, também as mais diversas células animais possuem um núcleo. Publica então a célebre obra Mikroskopische Untersuchungen über die Übereinstimmung in der Struktur und dem Wachstum der Tiere und der Pflanzen (1839), que encerra a expressão teoria celular. De acordo com esta concepção, a célula seria a unidade elementar fundamental de todos os organismos.
Os trabalhos posteriores de Remak, Henle, Purkinje, Schultze, Ranvier e outros, vieram corrigir algumas interpretações erróneas formuladas por Schwann e contribuíram para a edificação da Teoria Celular moderna, segundo a qual, todos os seres vivos são constituídos por células, ou, melhor dizendo, a célula é a unidade estruturante de todos os sers vivos, quer a nível anatómico como fisiológico. O axioma de Virchow Omnis cellula ex cellula (1858) estabelece de forma definitiva que toda a célula provem da divisão de uma célula anterior.
O paradigma actual
Ordem e complexidade, energia e informação
O advento da microscopia fotónica permitiu perscrutar a natureza íntima dos organismos e generalizar a todos os seres vivos o paradigma que veio a expressar-se pela Teoria Celular: (i) os seres vivos são constituídos por células; (ii) cada célula provém da divisão de outra célula; (iii) as células são compostas por citoplasma e núcleo.
O desenvolvimento subsequente de outras técnicas de observação morfológica e de análise química, não veio pôr em causa a essência do paradigma. Contudo, a concepção que hoje temos da célula distancia-se muito daquela que se generalizou na primeira metade do século XIX. Não só se conhecem muito melhor as estruturas sub-celulares, dos pontos de vista estrutural e molecular, e o seu funcionamento bioquímico, como também a célula se tornou objecto aliciante para outras ciências, designadamente a Física e as Ciências da Informação, recolhendo destas contributos importantes para a concepção de um novo paradigma.
Comparando a célula com o meio exterior, detectam-se semelhanças e diferenças. A principal semelhança reside na matéria elementar: todos os elementos (leia-se átomos) que participam na constituição da célula, se encontram também fora dela. Não existe portanto qualquer elemento da Tabela de Mendeleiev específico da célula. A principal diferença situa-se ao nível das associações que se estabelecem entre os átomos, isto é, das moléculas que se formam. Aí, sim, existe não só especificidade como um grau de complexidade superior. Com efeito, fora da célula, só em condições excepcionais poderá eventualmente ocorrer formação espontânea de prótidos, de açucares, de lípidos ou de nucleótidos. Estes são famílias de compostos específicos dos organismos, pelo que se designam por moléculas orgânicas.
As moléculas sintetizadas participam na organização estrutural e funcional da célula, ou, melhor dizendo, na criação da ordem arquitectural (estruturas macromoleculares) e da ordem funcional (metabolismo).
Assim, do mesmo modo que, quando se passa dos átomos a uma molécula específica, se acrescenta um grau de complexidade ao sistema, também quando as moléculas se associam para formarem macromoléculas ou cadeias metabólicas, se atinge um grau ainda mais elevado de complexidade. A complexidade resulta, não só do elevado número de componentes participantes, mas também, e sobretudo, da ordem subjacente.
Sendo certo que a célula é um sistema que permuta matéria e energia com o meio exterior, é justamente caracterizado como sendo um sistema termodinamicamente aberto. Como tal, seria expectável que evoluísse para um estado de equilíbrio caracterizado pela entropia máxima, isto é, de máxima desordem. E assim é de facto, pois nenhuma célula escapa à morte, mas atínge-o após uma moratória que corresponde ao estado vivo. Este é caracterizado como sendo um estado estacionário de não-equilíbrio: um estado durante o qual a ordem se cria e se mantém (entropia baixa), a despeito da tendência natural para os sistemas evoluirem para o equilíbrio.
A ordem cria-se, mas também se mantém. Com efeito, numa célula, todas as estruturas são transitórias. A vida útil de uma porção de membrana ou de um enzima, por exemplo, é relativamente curta, porque o próprio funcionamento introduz um factor de desgaste. Assim, a manutenção da ordem implica que todas as estruturas devam ser renovadas regularmente.
Este estado estacionário de não-equilíbrio, ou de ordem complexa, é conseguido graças não só às permutas de matéria e energia com o meio exterior (importação de matéria e de energia, exportação de matéria indesejável e de energia degradada), mas também à informação disponível e incorporada na ordem arquitectural e funcional. Na verdade, para que os átomos se associem em moléculas de forma não aleatória mas ordenada, é necessário que haja informação; para que as moléculas se associem em macromoléculas e estas se ordenem por forma a constituir, por exemplo, uma estrutura sub-celular, é necessário que seja disponibilizada informação; para que se estabeleça uma cadeia metabólica funcional, é igualmente necessário informação. Portanto, a informação é essencial à criação e manutenção da ordem. E tanto mais informação será necessária, quanto maior for a complexidade dos sistemas ordenados.
Sabe-se que a informação se encontra consubstanciada em longas sequências de nucleótidos, que se associam duas a duas e se dispõem em espiral, constituindo o ADN. A informação expressa-se sob a forma de cadeias peptídicas, designando-se por gene a sequência de ADN que determina a síntese de uma cadeia e, por genoma, o conjunto de togos os genes (informação global).
A generalização da Termodinâmica por forma a enquadrar a ordem biológica, e criação do conceito de estrutura dissipativa que se atribui aos sistemas que se mantêm em estado estacionário de não-equilíbrio, fica a dever-se essencialmente a Ilya Prigogine, Prémio Nobel da Física. Por sua vez, na transposição para os organismos vivos da Teoria da Informação de Shannon, através de ensaios de quantificação da informação associada a estruturas biológicas, destaca-se Henri Atlan.
Em conclusão, o paradigma actual incorpora a Teoria Celular, mas acrescenta-lhe forma-se de acordo com os contributos trazidos pela Biologia e pela Química e, mais recentemente, pela Física e pelas Ciências da Informação:
A célula é um sistema fisicamente isolado do meio exterior através de uma membrana. Termodinamicamente, porém, é um sistema aberto, pois através da membrana flui matéria e energia;
A célula é um sistema molecular extremamente complexo, que apresenta uma ordem arquitectural, consubstanciada em estruturas macromoleculares, e uma ordem funcional expressa no metabolismo; é também um sistema dinâmico, no qual se assiste a uma renovação constante das estruturas;
A célula, enquanto estrutura viva, mantém-se num estado estacionário de não-equilíbrio. Esse estado resulta não só do fluxo de matéria e energia que atravessa a membrana, mas também da existência de informação, que subjaz à criação e manutenção da ordem.
Modelos celulares
Qualquer que seja o organismo ao qual pertençam, as células são delimitadas por uma membrana de arquitectura molecular semelhante, e encerram estruturas que desempenham funções especializadas, tal como os órgãos de um ser vivo, designados por organitos celulares. Contêm em si, ainda, o equipamento bioquímico que lhes permite executar as funções básicas de permuta de matéria, de energia e de informação com o meio exterior, bem como as funções de síntese (anabolismo) ou de análise (catablismo) de moléculas orgânicas. Contêm ainda a informação codificada (genoma) para a síntese de moléculas necessárias à edificação da estrutura e ao seu funcionamento.
O estudo anatómico das células, realizado à escala mais fina graças ao microscópio electrónico, revela que os organitos possuem uma estrutura característica. As análises bioquímicas e biofísicas mostram, por sua vez, a natureza das moléculas que os compõem e, em alguns casos, a própria disposição das moléculas, isto é, a sua arquitectura molecular.
Célula procariótica e eucariótica
No centro da célula existe uma região onde se localiza a maior parte da informação de que a célula necessita para a sua existência, consubstanciada numa ou em várias macromoléculas de ADN. No caso das bactérias, não existe qualquer barreira delimitativa desse espaço central, pelo que não possuem um núcleo bem individualizado; por essa razão designam-se por procarióticas.
No caso dos animais, das plantas e dos fungos, existe uma estrutura que delimita a zona central que encerra a informação, designada por núcleo. O invólucro nuclear separa o núcleo do restante da célula, o citoplasma. Estas células, em que o núcleo se encontra bem individualizado, designam-se por eucarióticas.
A Teoria Endossimbiótica, que mais adiante se descreverá, oferece-nos uma explicação plausível de como terá ocorrido a evolução do modelo procariótico para o eucariótico.
Para além desta, existem outras diferenças significativas entre células procarióticas e eucarióticas, resumidas na tabela seguinte:
Célula procariótica | Célula eucariótica |
Nucleo não individualizado | Núcleo
individualizado pela existência de um invólucro nuclera |
Citoplasma
desprovido de compartimentos membranares |
Citoplasma fortemente compartimentado |
Membrana
plasmática geralmente desprovida de esteroides |
Membrana
plasmática com esteroides (colesterol) |
Ribossomas
pequenos, com coeficientes de sedimentação de 70 S (sub-unidades de 30S e 50S) |
Ribossomas
grandes, com coeficientes de sedimentação de 80 S (sub-unidades de 40S 60 S) |
Citosqueleto externo (parece celular) | Citosqueleto
primário, interno, fibrilar: Pode haver citosqueleto externo (parece celular das células vegetais. |
Apesar de todas as células eucarióticas possuírem enormes semelhanças entre si, alguns aspectos caracterizam e distinguem as células animais das células vegetais, como se verá adiante.
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